[AMOSTRA] Vol. 1: "La Lune"
- Lorena Silva
- 14 de out. de 2021
- 11 min de leitura
Atualizado: 17 de out. de 2021

Capítulo 1
Seraphine
Orfanato 3. Ano 1. Dia 1.
“Vai ser como sempre. Eles me deixam aqui, fecham o portão e eu preciso me virar para começar tudo do zero: escola, amigos, tentar criar algo mais próximo de uma família. Mas esta é a terceira vez, eu já não tenho tantos ‘zeros’. Já não tenho mais paciência.
Aos 11 anos, dizer que não tenho mais paciência é tão radical, mas é como me sinto. Só tenho essa agenda velha para me fazer companhia e não quero desperdiçar tantas folhas em branco. As meninas estão lá fora, brincando. Eu não quero brincar. Não gosto de fingir que estou feliz quando não me sinto nem um pouco assim. Não quero mais estar aqui. Em lugar nenhum.
Antes daqui, era outro lugar exatamente igual a esse. E antes desse, outro. Eu nunca vou entender por que fizeram isso comigo, por que não me quiseram, por que me abandonaram... Que ótimo, não posso nem pensar sozinha neste lugar. Barulho por toda parte, essas meninas que ficam me chamando para ir lá fora. Eu não quero ir, já disse! Me deixem em paz! Vocês estão realmente felizes por estarem trancadas aqui sem ter nenhuma certeza do que vai acontecer? Isso me assusta, me dá pesadelos, me faz ter frio à noite. Como vocês podem sorrir?
Preciso encontrar outro lugar para ficar enquanto estiver aqui. A varanda é exposta demais. Vou dar uma volta agora e procurar um canto”.
Orfanato 3. Ano 1. Dia 7.
“Olá. Hoje fez uma semana. Sinto falta dos livros que deixei antes de vir para cá. Devia ter trazido. A diretora se chama Jane Reynolds. Eu não consigo não chamá-la de “senhora”, mesmo que ela peça. Mas ela é uma pessoa boa, eu vejo que se esforça e quer que eu sorria. Hoje ela percebeu que gosto de ler, então me prometeu alguns livros. Disse que posso ir à biblioteca dela escolher. Isso é bom.
Não sei se gosto das outras meninas. Algumas são simpáticas e sorridentes, outras me incomodam constantemente, falam coisas de mim por que não quero brincar com elas. Parece difícil entender que prefiro ficar sozinha.
Eu pedi à Sra. Reynolds para ficar do outro lado da casa, onde ninguém vai. Lá tem um banco de madeira bem grande e velho, mas parece tão aconchegante... Ela disse que precisa pedir para alguém limpar lá e tirar as folhas, mas fiquei feliz de verdade pela primeira vez desde que cheguei, por ela não ter feito perguntas. Só disse ‘Tudo bem, Seraphine. Contanto que não saia de lá, não queremos perdê-la de vista’. Ela viu o quanto fiquei feliz, talvez por isso tenha deixado. Eu acho”.
Orfanato 3. Ano 1. Dia 15.
“Estou entediada. A escola vai bem, a professora é muito inteligente e faz muitos jogos nas aulas. As aulas de matemática ficaram mais divertidas, pelo menos. Fora a escola, não há muito o que fazer por aqui, já li todos os meus livros e acho que agora vou reler alguns. Às vezes ajudo a Sra. Lourdes a organizar os quartos e a carregar os materiais de limpeza. Ela limpa tudo sozinha e acho que ela está velhinha demais para isso. Ela me dispensa, fala que não precisa, mas vejo que ela fica mais animada quando ajudo.
Descobri que a Sra. Reynolds tem um sobrinho na cidade. Eu já tinha percebido que vinha sempre a mesma pessoa ao escritório dela, achei que era algum contador ou algo assim. Mas ouvi (sem querer) uma parte da conversa deles e ela o chamou de ‘meu sobrinho’. Eles não são muito parecidos, mas o que eu sei, nem eu mesma sei se me parecia com meu pai ou com minha mãe... Aí fiquei pensando como eles deviam ser. Será que se pareciam comigo? Será que meus cabelos castanhos eram da minha mãe? E meu nariz pontudo, do meu pai? Eu não sei. Acho que nunca vou saber”.
Orfanato 3. Ano 1. Dia 72.
“Todas as meninas estavam lá fora e eu voltei para ajudar a Sra. Lourdes a arrumar a mesa para o jantar. Estávamos passando pelo corredor e ela deixou um dos espanadores para trás. Eu voltei para buscar e você não vai acreditar no que ouvi. A Sra. Reynolds estava no escritório, ao telefone, eu acho, e falava sobre mim. Eu sabia, pois ela falou meu nome algumas vezes. ‘A menina Seraphine’, ela disse.
Mas então ela disse algo sobre a minha mãe. Sim, a minha MÃE. Ela disse que minha mãe tinha morrido naquela tarde. E que eu ‘oficialmente não tinha mais quem respondesse por mim. Era oficialmente órfã’. Oficialmente órfã. Eu nem levei o espanador de volta. Corri, fui para o meu banco atrás da casa e estava lá até agora. Já chorei tanto e não entendo até agora o porquê.
Chorei por uma pessoa que nunca conheci e que não me amava. Decidi que não posso mais sofrer por isso. Sabe de uma coisa? Não importa. Eu tenho que esquecer disso. Essa coisa toda de quem eram meus pais, isso não faz sentido. Eles não me quiseram, nunca se importaram comigo. Não tenho por que me importar com eles. Senti que precisava escrever isso aqui”.
Orfanato 3. Ano 3. Dia 29.
“Hoje é meu aniversário. Fiz treze anos, isso é meio que importante. Mas não sei se me importo. Não tinha parado para pensar sobre aniversários. No primeiro orfanato, comemoravam todos os aniversários juntos ao final do mês. Eu ficava no mês de Janeiro, mas por ser muito pequena, não consigo lembrar bem como era. No segundo, eu sempre esquecia que havia aniversários. Quando eu acordava, tinha um bolo e balões, mas não prestava atenção em que dia estávamos ou que mês era. Parei de dar grande importância a isso.
E hoje estão comemorando outra vez. Estamos no fim de Janeiro. Foi a primeira vez em que eu realmente comi meu bolo de aniversário. Tinha uma bailarina em cima. Eu não gosto realmente de bailarinas, mas a Sra. Reynolds quem encomendou e achou que combinava comigo. No último aniversário que tivemos, o bolo tinha um palhaço desenhado e a garota chamada Joanna chorou muito – ela tinha medo de palhaços, então acho que dei sorte.
Eu ganhei alguns presentes, mais livros da Sra. Reynolds, uma camiseta cor-de-rosa da professora Anna, uma caixinha de joias da Sra. Lourdes. As outras meninas me abraçaram e me deram enfeites de cabelo feitos por elas mesmas, o que achei muito legal.
Agora estou aqui no meu banco pensando que já faz tempo desde que escrevi da última vez. Desculpe. Mas existem dias que eu simplesmente não quero... Sabe... Não quero existir. Eu tenho pensado muito sobre isso, mas não contei para ninguém, podem pensar que estou querendo me matar ou algo assim, só que não é isso. Não é mesmo. Só queria que existisse uma forma de eu simplesmente não ser mais ninguém, nada. Desaparecer. Evaporar para as nuvens como chuva. Isso me parece muito bom agora”.
Orfanato 3. Ano 3. Dia 87.
“Às vezes acho que vou ficar aqui para sempre, ajudando a Sra. Lourdes e conversando com a Sra. Reynolds. Chegaram meninas novas, muito pequenas, e passei muito tempo olhando para elas lá no salão onde elas dormem. Uma delas era realmente muito pequena, um bebê. Fiquei olhando para ela, as mãozinhas eram do tamanho de dois dedos meus. Só percebi que eu estava chorando quando minha visão ficou embaçada de repente. Resolvi sair de lá e não voltar por um tempo. Sinto muita dor por elas e já tenho a minha própria para suportar”.
Orfanato 3. Ano 3. Dia 253.
“Hoje pensei que não seria má ideia ir embora. Pelo menos ver algum lugar diferente daqui por um tempo. Não tem muita coisa aqui ao redor, e tudo que há, já conhecemos. É tudo entediante demais, já não tenho livros para ler, então passo a maior parte do tempo vagando por essa casa enorme. Por isso ontem acabei esbarrando sem querer no sobrinho da Sra. Reynolds. Ele estava chegando e não vi mesmo que tinha alguém no caminho. Eu pedi desculpas, mas ele ficou lá, me olhando. Acho que ficou bravo por ter pisado no pé dele ou algo assim. Tratei de sumir, é claro”.
Orfanato 3. Ano 3. Dia 300.
“Estou aqui no meu banco, observando Joanna ir embora. Ela é uma boa aluna, meio avoada... Mas eu até gostava dela. Era uma das sorridentes. Acho que ela tem uns dez anos agora. E lá vai ela. A Sra. Reynolds disse que ela vai para a França. Que sorte. Lá deve ser um lugar muito bonito. Aquela parece ser uma boa mulher também, a que entrou com ela num carro azul. Ela acenou para mim e sorri para ela. Vim para cá escrever e continuo olhando enquanto o carro vai pela estrada e a Sra. Lourdes fecha o portão.
Será que um dia vou sair daqui? Eu vou estar também, um dia, num carro azul indo para outro lugar?”
Orfanato 3. Ano 4. Dia 48.
“Descobri que o filho da Sra. Reynolds se chama Adrian. De alguma forma, ele me encontrou no meu banco hoje. Eu nunca tinha falado com ele, sabe, falado de verdade. Eu dava bom dia quando cruzava com ele por aqui, mas nunca tínhamos conversado. Pensando melhor, talvez seja por que todas aqui no orfanato são mulheres. É bem esquisito falar com alguém que não seja.
Enfim, ele me encontrou lá no banco, acho que estava passando para ir embora. Ele me perguntou meu nome, mas não consegui falar nada. Ele é muito bonito, parecia um desses artistas de cinema. Só que senti algo muito estranho quando ele falou comigo e olhei para os lados e não havia mais ninguém por perto. Saí correndo. Foi isso”
Orfanato 3. Ano 4. Dia 53.
“A Sra. Reynolds veio conversar comigo hoje. Senti que estava encrencada, não sabia o porquê. Fiquei com medo de o tal Adrian ter dito algo sobre mim naquele dia. Ela quis saber, na verdade, se ele havia me ofendido ou algo assim. Eu disse que não, por que ele realmente não tinha. Só disse que eu havia ficado com vergonha. Ela sorriu, disse que era normal que eu ficasse tímida com estranhos. Mas que eu não precisava me preocupar com Adrian, “ele é um bom rapaz”.
Até agora fiquei pensando nisso. Eu não pensei que ele era mau. Só não quis ficar ali sozinha com ele. Talvez fosse o jeito que me olhava. Ele estava prestando atenção em mim. Acho que ninguém nunca prestou tanta atenção em mim”.
Orfanato 3. Ano 4. Dia 140.
“As coisas estão cada vez mais difíceis por aqui. Há dias em que mal consigo sair do quarto para ir às aulas. Os fins de semana são a pior parte: não consigo passar muito tempo lá fora, o barulho me incomoda, então agora fico mais aqui no quarto. É verão, provavelmente iremos à praia. Eu espero que isso aconteça. É um lugar diferente para ver. Tem o mar e a areia é tão branca... Mal posso esperar.
Obs.: Adrian me deu uma flor quando passou por mim hoje. Ele sabia onde eu estava, mas a Sra. Reynolds deve ter dito a ele. Não fiquei tão assustada como da primeira vez por que ele estava sorrindo e isso o fez parecer mais simpático”.
Orfanato 3. Ano 4. Dia 342.
“Hoje é Natal. Ganhamos alguns presentes, tivemos um jantar bonito. Às vezes conseguimos parecer uma família aqui, mas na maior parte do tempo só me sinto muito sozinha mesmo. Adrian veio jantar conosco, porém, não demorou muito. Ele distribuiu chocolates para todas nós e foi muito gentil.
Para mim, ele entregou um bombom e outra flor, pequena e branca. A Sra. Lourdes me ensinou a guardar flores secas. Deixei as duas que ele me deu sobre o banco, estão secando. Quando estiverem secas, guardo aqui de recordação. Não sei onde ele encontra flores tão bonitas. Feliz Natal!”
Orfanato 3. Ano 5. Dia 12.
“Mais um ano se passou e, ao que parece, é meu último ano aqui. As meninas mais novas sempre ficam falando que ninguém vai me querer por eu ser a mais velha, então vão me mandar para outro lugar. Mas até lá, não tenho problemas em ficar aqui. No fim das contas, eu nem ligo. Gosto da Sra. Reynolds, gosto de ajudar a Sra. Lourdes, elas são doces e adoráveis comigo. Não preciso de muito. Eu não tinha nada e hoje tenho um pouco disso, o que quer que seja. Só isso já superou os outros lugares por onde passei, onde todos eram mais carrancudos ou eu era pequena demais para lembrar deles.
A Sra. Reynolds disse que agora sou adolescente e pode ser mesmo que demore mais para uma família me escolher. Mas ela me disse que não preciso me preocupar com isso, pois ela já me considera uma filha. Bem, ela fala isso para todas as meninas, mas foi muito gentil da parte dela. Bom saber.
Obs.: as flores secas ficaram ótimas no branco do papel”.
Orfanato 3. Ano 5. Dia 19.
“Resolvi ir conversar com a Sra. Reynolds sobre mim. Quero dizer, sobre minha situação aqui. Eu não sou idiota, sei que não posso ficar aqui depois dos quinze anos. Quis saber para onde me mandariam desta vez. Ela tentou me alegrar dizendo que ainda faltavam alguns dias para o meu aniversário, mas não funcionou. Ela me disse que havia uma possibilidade, só me pediu que eu tivesse paciência, que ela iria cuidar disso pessoalmente.
O que será que ela quis dizer? Para onde eu vou dessa vez? Não sou mais criança, queria que me dissessem apenas a verdade. Só isso. Agora o que me resta é esperar. Esperar e esperar...”
Orfanato 3. Ano 5. Dia 29.
“Eu não aguento mais esse lugar. Não aguento mais essas pessoas. Preciso sumir! ”
Orfanato 3. Ano 5. Dia 47.
“Estou esperando a próxima onda de choro, mas ela ainda não veio. Tenho passado boa parte dos meus dias chorando. Sim, é ridículo, não é? Mas é incontrolável. Sinto uma angústia, uma tristeza tão grande... É muito triste não ter passado e nem futuro. As pessoas pensam que estou enlouquecendo ou exagerando, mas é isso que eu sou. Alguém sem nada para contar e sem o que esperar. Só tem piorado, pois agora fico pensando no que a Sra. Reynolds disse e até agora ela não me deu nenhuma resposta.
Só que hoje eu estava sentada no banco, chorando, é claro. Ninguém me vê chorar, sempre tomo muito cuidado, mas vi Adrian passar pelos fundos da casa. Ele mesmo, o sobrinho da Sra. Reynolds. Levei um susto e mal pude esconder que estava chorando. Ele parou e perguntou se eu estava bem. Eu só queria que ele fosse embora e me deixasse em paz. Mas ele foi sentar-se ao meu lado no banco e pediu para segurar minha mão. Não me importei. Ele a segurou e fiquei vendo-o fazer círculos com o polegar nos meus dedos. Fazia cócegas e sorri sem querer, mas ele não parou.
Não consegui mais chorar. Quando me dei conta, eu tinha abraçado Adrian tão forte que as lágrimas ficaram presas, não consigo explicar. Só o abracei muito forte... Não chorei mais desde esse dia. Achei que devia escrever isso aqui”.
Orfanato 3. Ano 5. Dia 59.
“Não posso me esquecer do dia de hoje, então, vim correndo aqui contar.
Eu estou indo embora. EMBORA. Vou sair daqui! Não é ótimo?
Foi o Adrian, ele vai me levar para a cidade, para uma escola integral – o que é parecido com um orfanato, mas há outros tipos de pessoas além de órfãos – preciso cursar o ensino médio e aqui nas redondezas não temos escolas desse porte. Ele e a Sra. Reynolds arranjaram tudo para que eu vá com ele amanhã para Downville.
Sabe o que é melhor? Adrian está abrindo seu próprio negócio em Downville e disse que assim que eu terminar meus estudos, posso trabalhar com ele! A Sra. Reynolds quer que eu tente a faculdade, mas já pensei em tudo: se eu conseguir logo um trabalho vou poder ter um lugar só para mim o mais rápido possível! Já pensou? Eu, Seraphine, num lugar onde ninguém pode me incomodar? Seria o paraíso.
Bom, eu ainda me sinto estranha perto de Adrian, mas não vou ter que morar com ele ou nada assim. A Sra. Reynolds me explicou que ele será responsável por mim em Downville, pelo menos até minha maioridade. Ainda não sei bem como funciona tudo isso, mas vou ter tempo. Downville é bem maior que aqui, sem dúvidas. Além disso, conversei bastante com a Sra. Reynolds e ela me garantiu que posso sempre voltar para cá, ela dá um “jeitinho”. Mas espero realmente que isso não aconteça (Nada contra ela).
Nossa, já escrevi tanto! Mas é uma notícia muito boa, a melhor da minha vida! ”
Orfanato 3. Ano 5. Dia 60.
“É hoje o dia. Não sei se vou ficar muito ocupada daqui para a frente, mas só quero registrar que chegou minha vez de sair daqui num carro azul. Bem, não é azul, é preto. Mas só em ver todas as garotas lá embaixo me esperando descer para se despedirem já sinto uma ansiedade muito grande. Preciso ir. Me deseje sorte!
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